A Arma Perdida de João Brandão
AUTOR: Paquete da Silva
TIPOLOGIA: Carta e linogravura
DATA: 1865
Contextualização
“Caro Senho João Brandão,
Venho por esthe meo inphormá-lo de ch’ o seo ttrabucho se enchonthra na mynha posse, chaso dezeje reavê-lo posso, com muyto pezar, apartha-me dele medyante ua necessária e – permitha-me que o dyga – merecyda commpensação pola salvvaguarda proporcyonada e esthyma vothada ao repherido objectho desde che dele s’ escheceo em lochal vizeense de commpanhias nem semppre mencionáveles.
Pola modestha chuanthia de cincho chontos de reys que sey possuir polo che ly nos jornais
P’ra chomprovar a posse do ttrabucho, junto enveo uma lynógravura de mia autoria e ch’ espero ch’ aprecie.
A myssiva de rezposta pode ser entregue no café “Saltitão” ao cuydado desthe seu mui devotho admmyrador.”
Eram estas as palavras que se podia ler da carta assinada por Paquete da Silva e datada de 1865. Esta carta escrita à máquina – invenção que surgira apenas cinco anos antes – e a respectiva linogravura, técnica também ela recente para a época, ganham um especial destaque não apenas pela sua raridade, mas sobretudo graças ao seu conteúdo e a quem se dirigem.
Observando para lá da incorreção da ortografia e do tacanho domínio no manuseio do linóleo, é fácil perceber que aquela carta se trata, primeiro, de um testemunho da estadia de João Brandão na cidade de Viseu, levantando até a possibilidade de fazer disso um hábito; e, segundo, é uma das poucas – senão mesmo a única – representação do que terá sido uma arma do ladrão.
João Brandão nasceu a 1 de Março de 1825 em Midões, na Tábua. Aquando pequeno já se lhe podiam perceber os traços que o viriam a caracterizar mais tarde: determinado, frio, um líder. Aos 12 anos, por puro exercício de pontaria, mata um pastor de Gouveia. A acção foi louvada por toda a família que mais tarde viria a tornar-se no seu bando. Anos depois adquiria a alcunha de “Terror das Beiras”. O nome não surge levianamente: Brandão fez carreira no manuseio de bacamartes, clavinas e clavinetes, trabucos e punhais, assaltando, assassinando e extorquindo. Fê-lo com uma imunidade surpreendente, mas à qual não estarão certamente alheias as ligações politicas, primeiro como “voluntário da Rainha” combatendo na Guerra Civil, mais tarde puxando cordelinhos para vários partidos a quem os seus serviços mais convinham.
Durante esses anos, vários são os relatos de João Brandão em Viseu, mas um deles tem tanto de inegável como de surpreendente. Terá sido em 1865, durante uma das suas estadias num Hotel local que Brandão, por acidente, perdeu uma das suas armas. Sabemo-lo graças a uma carta de chantagem assinada por um tal de Paquete da Silva, este último que se acredita ser um mero empregado do Hotel, mas cuja coragem não tinha fronteiras. Escrevia-se na carta que havia encontrado a arma do dito e, para que a devolvesse, exigia a exorbitante quantia de cinco contos de reis. A esse documento juntou ainda uma linogravura que o próprio fizera atestando a veracidade do que dizia. São esses elementos que sobreviveram até hoje, muito embora nada se saiba sobre a resposta de João Brandão ou o destino de Paquete da Silva, especulando-se no entanto que Brandão não terá sequer recebido a missiva.
O último capítulo de João Brandão em terras lusas desencadeia-se com o assassinato do Padre José da Anunciação Portugal. Com elevado risco, o administrador do Concelho de Oliveira de Hospital acusou Brandão de ter morto o Padre, e embora essa mesma sentença não tivesse sido unânime, Brandão acabou por ser sentenciado ao degredo em Angola, onde deveria usar, a todo o momento, uma grilheta. Com a sentença veio o grito do povo que, liberto da opressão cantava: “Já lá vais para o degredo – Adeus ó João Brandão – A morte d’aquele padre – Foi a tua perdição”. Já em Angola, o ladrão astuto consegue escapar-se da pena e acaba até por possuir uma fazenda agrícola que se tornaria uma importante produtora de aguardente.
A 20 de Setembro de 1880, noticia-se a morte de João Brandão, supostamente envenenado.